quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

presente do poetinha

Já que o blog andou quase temático esse ano, com meus lutos e perdas todas, divido com vocês aqui um presente que Vinícius de Moraes deixou para mim dentro de um livro verde:

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes. Antologia Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

então é natááááááál!

É, amigos, mais um Natal. Chuva em Brasília, pessoas enlouquecidas nas ruas atrás dos últimos presentes, crise econômica, famílias cada vez mais desanimadas com a festa - será só a minha? Não sei se é impressão ou se é a veiêra mesmo, mas sinto que o Natal perdeu muito do poder de mobilização aqui em casa e nas casas de muitos amigos. Aquela coisa de saber a data de montar a árvore, do ritual de tirar a caixa de enfeites da parte mais alta do armário, de pensar na "diagramação" das bolinhas para ficar bonito, de arrumar tudo, organizar amigo oculto, fazer adivinhaçõezinhas para ninguém descobrir quem havíamos tirado...enfim. Sinto que muito disso se perdeu.

Hoje a árvore aqui de casa é um vaso de comigo-ninguém-pode, poderosérrimo, todo enfeitado com luzes. Os presentes estão no chão, em volta da "árvore", mas não há n-e-n-h-u-m cartão de Natal junto. Os Correios nem passaram por aqui, a não ser para trazer contas, como faziam com o Vampiro Brasileiro. Muito ouvi coisas do tipo: "tenho de comprar o presente de fulano", antes da pessoa se lançar em uma cruzada nas ruas para voltar com "um presente", e não "o-presente-a-cara-do-presenteado".

Realmente, acho que a festa se voltou toda para a questão dos presentes e muito do ritual está se perdendo. E olha que, não vou mentir, eu gosto um bocado do ritual. Preciso dele para construir o sentido do Natal pra mim! Então fica combinado que eu vou desligar o computador e ler um livro comendo nozes com guaraná com o friozinho entrando na casa, como foi sempre! :)

Ah, sim! Eu estava prestes a escrever aqui o último e e grande sinal desse desânimo - o CD de Natal da Simone nem tocou! - quando minha mãe entra no quarto bradando: "Cadê meu CD? Onde você escondeu?". Esconder disco da Simone, eeeu?? Não sei de nada! Se escondi mesmo, foi há muitos anos e eu nem lembro onde! Thanks Santa Claus!

terça-feira, 24 de junho de 2008

apontamentos para a fotografia da saudade

Hoje discutimos o conto A Aventura de um Fotógrafo, do Calvino, que está no livro Os Amores Difíceis. Fala, essencialmente, sobre a fotografia e a vontade de fixar tudo, de reter para sempre na memória um traço passageiro por essência, de esgrimar com o tempo portando lentes e caixas escuras. Enquadros. A ponte era a história de Antonino Paraggi e seu fetiche por tornar válidos apenas os instantes fotografáveis da vida - ou fotografar todos os instantes, para que todos se tornassem válidos, um diário fiel de si mesmo e do mundo. Loucura ou estupidez?

Revi agora no arquivo do meu computador, aqui no trabalho, uma foto da Mel. Minha cachorrinha linda, que passou dez anos maravilhosos junto comigo. A Mel se foi em fevereiro e eu penso nela todos os dias. Não por querer mantê-la de forma egoísta na nossa companhia, mas pela saudade, por tudo o que eu vejo nos olhinhos dela e que nenhuma imagem do mundo poderia reter.

Fotografar a ausência da Melanie seria apontar minha objetiva para o tapete da sala (aquele canto exato, aquele ângulo de deitar), para o chão da cozinha perto do cesto de frutas, para a caminha embaixo da mesa (o "QG"). Seria fotografar o sorriso dela quando eu chegava do trabalho, mais os três sapateados com a patinha e o leve caminhar para trás, diante da porta. Congelar no tempo minhas mãos sobre o topete de poodle maluca, congelar o carinho dela nas minhas mãos, os olhares de dona absoluta da casa.

Eu fotografo a ausência da Mel todos os dias, em silêncio, sem mediações. Estupidez, loucura, saudade infinita. Meses se passaram e eu continuo a mesma criança diante da morte, um choro silencioso que por vezes se perde entre livros e escritas e angústias, mas que quando reencontro é como se tivesse passado o tempo todo em choro contínuo. Por dentro.

Fotografar o invisível é dar a ver o choro calado das nossas personagens? Chora para a câmera!, pede o diretor. O que é retido é a máscara, persona, a máscara da máscara? Como fotografar a sombra? Enfim, apontamentos para a fotografia da minha saudade. Ou do mundo agora, quando a Mel já é parte do meu olhar. Te amo, minha Melzinha!!

segunda-feira, 19 de maio de 2008

da poética do cotidiano

Fechada, por tempo indeterminado, para todos os tipos de balanços possíveis.

Cansada dessa correria besta, leituras fordistas em que não se consegue nem parar para ruminar o que se lê, muita informação na cachola sem tempo pra dar algum sentido ou mesmo não-sentido ao caos.

Okêi, fui eu quem procurei essa nova situação, porque eu sou uma maluca que não consegue ficar "parada" mesmo quando já tem 6.10²³ atividades. Então talvez eu devesse só respirar fundo, repetir o mantra "a vida é dura", passar a primeira marcha e caminhar mais um pouquinho. Mas eu não consigo passar de olhos fechados pelo sagrado do mundo. Diminuir essa dimensão no meu cotidiano é diminuir o que quer que se chame de "alma". E sem alma não vai, não mesmo.

O problema é que eu resisto, busco sentido, um melindre talvez, em vez de me mimetizar nas coisas que passam por mim. Falar do corpo do receptor/leitor/fruidor/ator, sentido, experiência estética por uma poética do cotidiano ao mesmo tempo em que se fala dos meios espiral do silêncio métodos de pesquisa lógica em uso reconstruída objetos discurso da perda níveis semânticos adaptação ou diálogo intertextualidades. É preciso um respiro entre tudo isso, um respiro em que se possa ter o tempo de cada imagem, em que se possa viver seus lutos, enterrar seus mortos, elaborar sua saudade, ouvir os sinais do seu corpo que não, não passa inatingível e forte por tudo.

Para tentar escutar tudo isso, ao menos aqui me permito um pouco de silêncio.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

ser, imagens e escrituras

O escritor argentino Manuel Puig disse que, quando menino, seu maior desejo era ser um filme.

Fiquei com essa imagem na cabeça, movimento interessante na cabeça de uma criança encantada diante da plasticidade do "real" na tela.

Ser um filme, eterna passagem congelada do tempo.

terça-feira, 6 de maio de 2008

são paulo, meu amor

De nenhuma viagem se volta.

Estamos sempre voltando para casa.

De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.

Misturo imagens de Juarroz, Heidegger, Raduan Nassar, Calvino. Já nem sei quanto de um existe no outro, tanto...! Voltei de São Paulo ontem, uma curta estada de quatro dias, e transito agora em todos esses quadros. Eterno retorno. Sei que, dessa vez, trouxe a cidade em mim, já me fiz um pouco daquela dureza. Transformo minha linguagem pela transformação das paisagens em mim? Transformo as paisagens pelo meu novo olhar, desencantado para que nasça outro encanto?

Muitas perguntas me ocorreram durante as caminhadas em ruas cinza, chuva, frio, multiplicidade de direções. Porque a placa dentro do metrô, com o itinerário do trem, dessa vez me foi só a placa dentro do metrô. A camada de algum sentido sobreposto a ela pela minha euforia simplesmente não estava mais lá. A estação era uma estação, as ruas eram ruas com a necessidade de uma escolha de caminho, até as distâncias pareceram menores. Me senti como alguém que volta a um lugar da infância e percebe como tudo é menor do que na memória.

É que eu me misturei a São Paulo. Pela primeira vez me vi feita de concreto, chuva, frio, toda a minha ânsia de me impregnar da cidade materializada no meu caminhar sereno. Recebi uma carta em envelope laranjado um dia antes de partir. Meu encanto de quem se vê diante do infinito, ingênuo e apaixonado até, ficou em algum lugar da linha vermelha. Eu precisava entender que a vida também é feita de som e de fúria. Nesse lapso de tempo do envelope laranja, carrego em mim talvez aquilo que buscava de forma tão desajeitada, sem saber. Mas continuo voltando para casa. E, como diz Juarroz, mudando minhas palavras pela roda das mutações.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Bachelard

Logo, toda cultura científica deve começar, como será longamente explicado, por uma catarse intelectual e afetiva.

Gaston Bachelard, em A Formação do Espírito Científico.

Nada como ver, em uma frase, todo o seu processo interior passando feito filme curto. Desapaixonar-se, matar o objeto para afastar-se dele e haver uma nova nascitura, ser o próprio objeto, embeber-se dele, transformar uma garrafa mundana em uma garrafa já Garrafa pelo simples recorte-problema.

E eu querendo viver, estar na poesia, olhar a poesia, estar na própria verticalidade do mundo. Como Jano, entre dois rostos, a vigiar passagens tão antigas de mim. Diante do novo, a reorganização não se faz sem crise. Sigo, um olho para janelas, o outro para o caminho do pensamento científico. O coração ainda pendendo para a ausência de molduras do mundo.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

maricotinha

Show de Maria Bethânia e Omara Portuondo em Brasília nos dias 17 e 18 de abril. Não tem preço, mas custa R$ 90 a meia.

Não dá raiva uma coisa dessas? Será que não vai ser nessa vida que eu verei Bethânia ao vivo? É o tipo de situação que me deixa mal: até dá pra fazer um sacrifício e pagar, sob a condição de passar o resto do mês quebrada-porém-feliz. Mas vale a pena? Amo Bethânia, mas eu me sinto estimulando esse roubo que é o circuito de shows em Brasília. Ai ai ai....dúvida cruel! E a mulher do Teatro Nacional ainda faz pressão psicológica, dizendo que tem pouquíssimas cadeiras. Medo!

segunda-feira, 17 de março de 2008

Casi Razón

#51

Nos fatiga más y más la poesía a medias, la poesia donde no se juega íntegramente el poeta, en todos los aspectos de la creación. La poesía a medias es el peor enemigo de la verdadeira poesía, como el hombre a medias es el mayor adversario del hombre. Tal vez ocurra lo mismo con todo cuanto es a medias, en relación con lo que es o trata de ser: Hasta el fracaso exige una integridad, especialmente en poesía.

Roberto Juarroz, em Casi Razón (Fragmentos Verticales, Decimocuarta Poesía Vertical)

segunda-feira, 10 de março de 2008

cuadernos

Faxinando gavetas e velhos bloquinhos de jornalista, encontrei preciosas pausas da rotina "factual". Não me lembro de que livro vieram. Ficam assim, como respiros que chegaram sem remetente:

§ ...que a idéia de isolamento só pode ser experimentada durante o trajeto de um lugar a outro, isto é, quando não se está em lugar nenhum.

§ toda conversa é a continuação de outra mais antiga.

§ Um cemitério de horas passadas.
Seguido das minhas notas insones: Para onde vão as horas passadas? Em que solo repousam? Dormem todas abraçadas ou espalham-se entre multidões de memórias? Têm um rosto ou tantos quanto cabem na infinidade de um segundo?


Papel com verso em branco - fim de um enquadrar de palavras, com possibilidade de nova história na sombra do que foi escrito.

terça-feira, 4 de março de 2008

para arlecchino - notas que o carnaval traz

São impressões tão antigas que encontro dificuldade pra dizer o que está dito a cada segundo pelos meus olhos: é que sempre fomos. Sempre fomos, meu amor, desde que dona Teté correu de Sítio dos Nunes para a Serra Talhada, sempre fomos. Desde que um pequeno delicado nasceu na terra dos matadores. Desde que você e sua mãe foram abraçados por Brasília, um abraço desajeitado, cheio de quinas e ossos, daqueles que espetam. Somos tão antigos quanto a poeira dessa cidade. Somos desde que um tal José veio de São Paulo para cá, e encontrou uma tal Maria. Desde que, traçados irônicos os dessa Brasília, vocês foram morar na quadra da minha avô emprestada, presente de madrinha. Desde que nunca nos vimos. Somos a mesma brincadeira tímida, o mesmo verão televisão-palavras. O mesmo medo de escuro, medo de ficar sozinho na escola depois que todas as crianças iam embora, medo de que o ar não nos molhasse os dedos à noite, quando elas dormiam tão quietas. O mesmo olhar encantado diante da chuva na janela. Até o choro de felicidade vem de um lugar muito parecido, a mesma fonte, aquela que nos torna pequenos diante de tantas belezas do mundo. Quem sabe você não caminhava pelos bosques de superquadra enquanto eu andava de moletom lilás pelas ruas do Guará, soprando flores até que ganhassem o céu? Ou então enquanto eu media o tamanho da minha sombra no asfalto? Quem sabe você também não se perguntou por que ela estava sempre lá, e era impossível fugir? Quem sabe não inventou uma receita com leite ninho e chocolate no liquidificador, pra parecer milkshake? Acho que inventamos tudo isso, sem saber que inventávamos nosso próprio encontro. Porque eu miro seus olhos e vejo todas as minhas velhas imagens, coisas tão antigas que não sei se são recordos ou registros de antes, da terra, de estrelas, essa matéria de que somos feitos.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Amor, oratórios, passarinhos e pequenezas

Vez por outra, tenho vontade de sumir por esse Goiás Velho de meus Deus, só para ouvir histórias. Queria mesmo era passar pela estrada de terra até chegar em Canápolis, chupar cana sentada na porta da casa que nem existe mais, olhando o tempo passar. Sertão é dentro da gente, já disse Guimarães Rosa. No domingo passado, fui ver um show de viola caipira e chorei. Era como se aquele som nunca me estivesse ausente. Acho que nasci ouvindo o pontilhar de cantadores, aqueles que percorriam as ruas lançando desafios. A mesma viola que meu avô, seu Emiliano Neves, ouvia na vitrola velha. Chorei porque senti que ele está comigo. Como Macabéa ao ouvir una furtiva lacrima na Rádio Relógio. Como se ali eu tivesse descoberto o princípio do (meu) mundo. De repente, o mundo me fez sentido. Era isso: aquele som nunca havia me deixado.

Refiz o filme da minha infância ali, na platéia do Teatro da Caixa. Quando pequena, eu não entendia por que a minha avó comia com as mãos. Ora, se já existia colher! Também não entendia por que meu avô passava as tardes sentado na velha cadeira em frente à porta. A cadeira dele, olhos firmes, como que a não perder de vistas ninguém que entrasse na casa. Não via graça naquele amontoado de primos e tios de cócoras no degrau, em torno da cadeira de meu avô, simplesmente a espiar o tempo e contar causos. Eu achava feio o teto de madeira e tijolos expostos, empoeirados. Não via sentido em chegar e ter de beijar a mão de todos os mais velhos, a bença, minha avó! Deus que nos dê boa sorte.

Foi preciso que seu Emiliano e dona Rachel fossem embora para eu perceber o presente que são todas essas coisas. Os sons. Terra e bois. É que, na casa deles, palavra falada era economia. Nunca tive a oportunidade de conversar sobre isso, esse sentimento de amor atávico que hoje choro quando escuto seis violeiros construírem retratos de minha família.


Hoje agradeço por ter tomado banho de rio em Porto Novo, vindo a ser água, eu e o Velho Chico. Por ter comido umbu e tido piriri no ônibus a caminho de Santana dos Brejos. Por ter visto a roda gigante dos ciganos em Posse, cidade entre Bahia e Goiás no meu mapa de lembranças. Agradeço pelas imagens daquele bando que trouxe o parque mágico, pelo medo de ser levada embora e pelas invencionices. Por ter comprado bala fiado na venda, cruzadinha em papel amarelado, banana embrulhada em jornal. Pela igreja branca no meio da praça. Foi lá que aprendi a rezar o Pai Nosso e errei o Creio em Deus Pai, quando todos os primos já sabiam. Obrigada por eu ter me feito de oratórios, passarinhos e pequenezas. Por ser a filha de Maria de Sinhá, amém.

* Texto escrito depois de um show do encontro Viola Instrumental Brasileira, realizado em 18 e 19 de março, no Teatro da Caixa. Participaram Toninho da Viola, Manoel de Oliveira, Paulo Freire, Roberto Corrêa, Cacai Nunes e Andrea Carneiro.


valsa verde

Dançávamos de mãos dadas diante de crianças, todos os olhares atentos para o pulo que parecia um pato, dezenas de meninos nos imitavam por toda a rua, com as luzes dos postes projetando milhares de patos no chão. Andamos até a escada, quando você parou e me deu passagem. Continuei andando; valsava agora com as luzes e com o que sobrara de você. Eu girava e meninos brincavam embaixo da minha saia, cada um pendurado em um carrossel de tecido. Viramos uma sombrinha perdida a nos proteger de chuvas. Um guarda-chuva verde, esquecido, na rua de patos.

Textos antigos

Amigos, enquanto eu não consigo trazer os textos do blog antigo para cá, deixo o link para quem se interessar:

www.poemalunar.blogdrive.com

Vou tentar criar uma espécie de arquivo aqui, para facilitar. Por enquanto, vamos no pinga-pinga!

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

E a velha pastora sai de cena...




Qual pedaço da minha alma se chama Mel? Com qual Danyella a Mel me fazia entrar em contato? Que Danyella se despediu de mim junto com a velha pastora, a velha poodle que dividiu 10 anos comigo? Como recuperar o pedaço de mim que se foi? São tantas perguntas, porque tudo agora é busca, tudo é desejo de ser água e dissolver o que sinto na infinitude do mundo. É que, perto de muita água, tudo é mesmo feliz. E eu, agora, sou essa ausência irreparável.

Aprendi, por todos esses anos, a respeitar tua presença, silenciosa, de alcance silencioso pela casa inteira. Mel chegou quando eu tinha 13 anos. Veio como um presente dos céus, um sinal cósmico de que nós precisávamos nos encontrar no mundo. Um belo dia, minha mãe recebeu uma carta endereçada à casa errada. Quando foi devolver o envelope, se deparou com uma pequena poodle abricot, toda serelepe, que veio fazer festinha no portão. Foi amor à primeira vista.

Durante dias, minha mãe só falava da cachorrinha, de como havia se encantado por ela e de como pareceu recíproco. Cerca de uma semana depois, a Ester, então dona da Mel, tocou nossa campainha. De Mel e cuia. Disse que precisaria se desfazer dos cachorros e que seu marido queria dar a Mel, única filhote que restara da Julie, para um amigo do casal. Só que o coração dela mandava dar a cachorrinha para a minha mãe, não sabia bem o porquê.

Aceitamos de pronto e, a partir desse dia, nossa felicidade encheu a casa inteira. Eu estava no computador, conversando ("teclando") com a Gabi num ICQ da vida. Minha mãe abriu a porta do meu quarto e a Mel entrou, logo vasculhando tudo em volta e se aninhando nos meus pés. Ela ainda não se chamava Mel. Ganhou esse nome por conta da minha fase Spice Girls e pelo topete à la Melanie B, a Scary.

Desde então, Melanie passou a dividir a rotina com a gente. Nessa época, nossa outra cachorra, a Monalisa, teve várias crises epiléticas numa semana. Cogitou-se dar a Mel, devia estar deixando a outra agitada. E, de fato, deixava. Tomava a comida dela e brigava se ela passasse perto de um biscoito enterrado.

Mas o amor foi mais forte. E até a Mona passou a respeitar aquela figura espevitada, "trator", que tentava morder até pitt bull. A figura que dava um tapa na vasilha de comida quando não ia com a cara da ração. Ou que guardava um pão de queijo por dias, só pelo prazer de vigiá-lo e implicar com quem quer que passasse perto.

Mel chegou como um bebê, alguém mais frágil que eu, e envelheceu nesse meu curto espaço de 10 anos, em que deixei de ser uma menina fã de Spice Girls para virar uma mulher com um emprego, dita cidadã respeitável que ganha dois mil cruzeiros por mês. Foi tanto chão nesse intervalo e tudo mostra-se frágil agora.

Enquanto eu era transformada pela rotina e obrigações e descobertas, a Mel deixou de ser um filhote e virou minha irmã mais velha, a irmã que eu não tive. Aquela figura forte, que fica sentada na velha cadeira perto da porta, que dá o recado só pelo olhar. Aquela figura a quem pedimos a benção em silêncio antes de sair. A Mel virou minha avó. Enquanto eu virei esse rosto em 10 anos, virei esse intervalo, a Mel foi meu bebê, minha irmã e minha avó. Foi toda a natureza, todo o infinito, todo o tempo.

Eu queria estar dizendo tudo isso pra ela, tão frágil em seus últimos momentos de vida. Mas tenho certeza de que ela sabe de tudo. Sei que ela se lembrou, a cada segundo, do amor que construímos: ela parte da nossa família e da nossa alma una.

A você, Melzinha, que só trouxe beleza e força à minha vida; que me mostrou o valor da lealdade e do afeto irrestrito, obrigada! Você, agora, é nossa oração.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

para arlecchino

São impressões tão antigas que encontro dificuldade pra dizer o que está dito a cada segundo pelos meus olhos: é que sempre fomos. Sempre fomos, meu amor, desde que dona Teté correu de Sítio dos Nunes para a Serra Talhada, sempre fomos. Desde que um pequeno delicado nasceu na terra dos matadores. Desde que você e sua mãe foram abraçados por Brasília, um abraço desajeitado, cheio de quinas e ossos, daqueles que espetam. Somos tão antigos quanto a poeira dessa cidade. Somos desde que um tal José veio de São Paulo parncontrou uma tal Maria. Desde que, traçados irônicos os dessa Brasília, vocês foram morar na quadra da minha avô emprestada, presente de madrinha. Desde que nunca nos vimos. Somos a mesma brincadeira tímida, o mesmo verão televisão-palavras. O mesmo medo de escuro, medo de ficar sozinho na escola depois que todas as crianças iam embora, medo de que o ar não nos molhasse os dedos à noite, quando elas dormiam tão quietas. O mesmo olhar encantado diante da chuva na janela. Até o choro de felicidade vem de um lugar muito parecido, a mesma fonte, aquela que nos torna pequenos diante de tantas belezas do mundo. Quem sabe você não caminhava pelos bosques de superquadra enquanto eu andava de moletom lilás pelas ruas do Guará, soprando flores até que ganhassem o céu? Ou então enquanto eu media o tamanho da minha sombra no asfalto? Quem sabe você também não se perguntou por que ela estava sempre lá, e era impossível fugir? Quem sabe não inventou uma receita com leite ninho e chocolate no liquidificador, pra parecer milkshake? Acho que inventamos tudo isso, sem saber que inventávamos nosso próprio encontro. Porque eu miro seus olhos e vejo todas as minhas velhas imagens, coisas tão antigas que não sei se são recordos ou registros de antes, da terra, de estrelas, essa matéria de que somos feitos.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

correspondências

Sem muito ânimo pra continuar o diário porteño agora, assim, de lógicacronológica de calendários. Sem muito ânimo pro carnaval, apesar da alma festeira. As ruas se enchem de orquestra e serpentina, mas me parece uma coisa que chega alheia, de fora pra dentro, como um esforço. Mas há sempre as máscaras.

O bloco passa na quadra ao lado e eu preparo meu corpo com as correspondências de Clarice. Em uma, ao então marido, escreveu das aventuras na fazenda e da impaciência, que tolices estaria dizendo? Ele respondeu, entre formalidades de diplomata:

Somente uma coisa me faria bem agora. Seria adormecer a cabeça no seu colo, você me dizendo bobagenzinhas gostosas pra eu esquecer a ruindade do mundo. Vou dormir pensando nisso.

Nossa correspondência começa agora, antes mesmo da máquina de escrever e da casa nova. Notícias da Chuva.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A mudança do antigo endereço para cá será gradual. Vou postando simultaneamente nos dois endereços até sentir em qual casa me adapto melhor. Vejamos no que dá.

18 dias no Japão

Foram 18 dias de sonho e muitas caminhadas pelo Japão. Começamos por Tokyo, onde ficamos por 4 dias. A ideia era entrarmos em contato com c...