domingo, 16 de dezembro de 2012

Dos achados em antigos cadernos: o anti-sonho

Rabiscado nos idos de 2004. Uma mistura de Clarice, terapia e muita juventude, rsrsrs....


Um anti-sonho. Não. Esfrego os olhos como quem tenta desmanchar uma imagem doída. Aqueles quadros mentais que se projetavam nas paredes da minha cabeça. Dentro da minha cabeça tinha um sonho que não era. Meu espelho, meu duplo. Mas não eu. Um eu feito de sombra e luz, uma imagem-movimento que gritava ter uma cara. E seus gritos ecoavam em cada imensidão do meu corpo.

Mas aquela cara não era a minha. Eu era uma ilusão do que me era real. Cavernas de Platão dentro de mim. E eu tateando as paredes para ver se me achava. É que, durante anos de minha vida, eu buscava incessantemente saber quem eu era. Hoje parto em minha anti-busca, uma procura desesperada pelo anti-eu. Porque só saberei quem eu sou quando finalmente vir quem não sou.

E quem eu não era? Eu não era aquela que havia se mostrado a todos até então. O eu que conheciam não era. Aquela dor, os ombros curvados, o olhar parado num nada sempre tão cheio de melancolia. Aquela nunca fora eu.

É que agora meu coração tem um rosto. No reflexo do meu coração há um amor refletido. E só agora eu vejo que nunca fui fotografada como quem sou.

A  mulher que tomava um café todos os dias no mesmo horário na mesinha do canto. Aquela não era. Eu bebia algo que preenchesse o vazio. E hoje meus vazios são cheios de uma substância impalpável e sublime. Agora meu coração ama e me sacode forte para que eu grite meu sonho, mas o berro me rasgava por dentro e morria em minha garganta.

Esperava um grito de anti-sonho para, enfim, ser do tamanho do mundo. Eis que finalmente gritei.

O sonho que nunca seria era ser uma outra.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Cronopiando à la Cortazar - Os Taninos Redondos



Os Taninos Redondos são parentes distantes das Sonecas. Distância não tão grande, é preciso dizer, a ponto de herdarem o corpo oval e o pequeno porte. Descendem da seleta categoria dos que não saiam da caverna. Preferiam assistir projeções de sombras e saltitar em mímicas, a grande diversão. Ébria é a cor dos olhos dos Taninos Redondos, o que os diferencia das retinas teimosas das Sonecas. Diz-se dos Taninos que adoram pular de almofada em almofada, embora seus contornos arrendondados favoreçam campeonatos de cambalhotas. Temos aí seu grande evento anual: enquanto as Sonecas disputam quem acorda mais cedo e os afegãos lutam bravamente para ver quem fica com a pipa azul, os Taninos Redondos dedicam-se à arte cambalhotesca. Outra atividade que lhes é cara é colorir os olhos de casais desavisados. Quando se percebe, tudo em volta caminha devagar, em suspenso. Os Taninos são travessos. As antigas corridas entre árvores deram-lhes agilidade para esconder relógios. As horas tal qual conhecemos somem e o tempo passa a ser contado em frações contínuas de enlevo. Os Taninos Redondos têm radar aguçado para vernizes. Há boatos de que se alimentam de luz. E de cumplicidades silenciadas em beijo.

Cronopiando à la Cortazar - The Round Tannins

The Round Tannins are distant relatives of the Nappies. The distance isn´t that huge, I must clarify, as they inherited the oval body and the tiny aspect. They come from the very dinstinct category of those who didn´t leave the ancient caverns. They prefered to watch the shadow projections on the walls and to jump in pantomime, the great fun. Inebriate is the Round Tannins eyes´colour, what difference them of the stubborn retinas of the Nappies. People say that the Tannins love to jump from cushion to cushion, although their round contours are better appropriate to somersaults championships. Here we have their biggest annual event: while the Nappies dispute over who wakes up the earliest and the afghans fight bravely to see who gets the blue kite, the Round Tannins devote themselves to the somersault art. 

Another activity that they please is to colour the eyes of distracted couples. When you least expect it, everything around goes slower. The Tannins are tricksy. The old races among trees gave them a great agility to hide clocks and timepieces. The hours the way we know just disappear and the time starts to be measured in continued fractions of joy. There are rumors that the Round Tannins are nourished by light. And by complicities kept in a kiss.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Hasta el fracasso exige una integridad...


É sexta-feira e está rolando o festival Curta Brasília lá no Teatro Nacional, com um monte de filmes bacanas. Mas, depois de um dia chatinho de trabalho em pleno feriado em Brasília, cheguei em casa super sem energia. ‎E com todo o combo melancolia+ansiedade+dismorfismo+irritação que a TPM sempre me traz. Então, em vez de pular da janela, é melhor ler poesia.

E aí minhas escolhas são certeiras. Nada melhor para me encher a alma de beleza do que o mestre Roberto Juarroz e sua Poesía Vertical. E hoje ele me presenteou assim:


"Nos fatiga más y más la poesía a medias, la poesía donde no se juega íntegramente el poeta, en todos los aspectos de la creación. La poesía a medias es el peor enemigo de la verdadera poesía, como el hombre a medias es el mayor adversario del hombre. Tal vez ocurra lo mismo con todo cuanto es a medias, en relación con lo que es o trata de ser. 

Hasta el fracasso exige una integridad, especialmente en poesía."





quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Midnight in Berlin

It was autumn night in Berlin, when an old Chevy stopped in front of Rosa Luxemburg Platz and someone invited me to come inside. I can't explain why, but I wasn't afraid. I entered the car and it suddenly took me somewhere in the early 50s. When I opened my eyes, I was in a cozy club, with a small stage where the musicians were playing their new kind of music. The place had the colours of a Hopper painting. There, at the counter, I saw Billie Holiday asking for something to drink. At the other side, Nina Simone was chating with Miles Davis, while Ray Charles Robinson was alone on a corner table, smoking a cigarette, watching piano notes dancing with the smoke.



Mr. Otis Redding invited me to dance after offering me a drink. I asked for a Veuve Clicquot, but he said: "sorry, babe, I can't afford it to you now, but I'll buy this full of love beer", and then he took me to the dance floor with his heart just close to mine. We kept dancing on the dock of the bay, just wasting time. I closed my eyes and we were back to our home in the Deep South, back to our white fence house. Daydreaming. I knew the car would come back to pick me up. So I just stayed there, queen of my private dance floor, shooting my own poetry film made by fantasy, music and love.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Crítica de cinema: À Beira do Caminho, de Breno Silveira



O diretor Breno Silveira sabe como contar uma história e emocionar, mesmo seguindo um roteiro previsível e optando por uma direção sem grandes inovações. Foi assim em “2 Filhos de Francisco” (2005) e é assim também em seu longa mais recente, À Beira do Caminho.

O filme é um legítimo road movie e conta a história do caminhoneiro João (João Miguel), um homem endurecido pela vida, que segue solitário, sem poucos amigos. Dele, nada sabemos no início do filme. Seu passado vai sendo construído aos poucos, em lembranças inseridas ao longo da narrativa. E o motor para a reconstrução desse passado é o encontro dele com o menino Duda (Vinícius Nascimento), que se esconde no caminhão de João com o intuito de chegar até São Paulo em busca do pai, que ele nunca conheceu. É do farto material humano que vem do encontro dessas duas pessoas machucadas pela vida que o filme se vale. E dá certo.

No início, João tenta largar o pequeno Duda na cidade mais próxima. Ele, um homem bruto de barba por fazer, não é lá dado a muita conversa e não quer uma criança viajando com ele. Mas a história de Duda funciona, de certa forma, como um espelho de sua própria história. O menino perdeu a mãe e se viu sem nenhum parente por perto. O único resquício de família que lhe sobrou foi uma velha foto do pai, com um endereço de São Paulo no verso. Já o sisudo João largou para trás sua família, após desencontros amorosos e tragédias envolvendo a sensual Rosa (Dira Paes) e a doce Helena (Ludmila Rosa).

Conforme vão cruzando as estradas rumo a São Paulo, João e Duda inevitavelmente constroem laços de amizade que vão modificar o rumo de suas vidas. A história ganha ainda mais carga emocional com a trilha sonora, composta unicamente por músicas de Roberto Carlos. Nada poderia cair tão bem para embalar essa trama que se passa no coração do Brasil, no interior, e que fala de pessoas simples, de amor e  amizade. Uma curiosidade: foram as músicas do Rei que inspiraram o argumento do filme, que é o que serve de base para o roteiro.



A direção de fotografia de À Beira do Caminho, assinada por Lula Carvalho (filho do genial Walter Carvalho), é primorosa, assim como a direção de arte de Claudio Amaral Peixoto. Somos realmente transportados para a atmosfera das cidades do interior. Tudo está: os postos de gasolina simples, os restaurantes de beira de estrada, os rios onde Duda e João tomam banho e lavam roupas, os parques de diversão improvisados .

Quem já viveu no interior do nordeste ou tem família nesse universo, certamente  vai se identificar com muitos dos elementos. Fui assistir com a minha mãe e choramos, as duas, ao ver um pouco das nossas raízes. Eu me lembrei das viagens que fizemos à Bahia, de ônibus, quando eu era criança. Das vezes em que paramos para comprar umbu porque eu estava com dor de barriga. Me lembrei também das idas a Posse, de caminhonete, as crianças na caçamba da D20, o parquinho com roda gigante que os ciganos montaram na praça. Eu queria ir, mas tinha toda aquela coisa de que "cigano roubava menino".  Ah, e tem as canções do Rei, é claro. Acho que elas sempre estiveram de música incidental na minha vida. Tanto que eu e minha mãe fomos juntas também ao show dos 50 anos dele aqui em Brasília. Bom, mas deixemos minhas memórias e voltemos ao filme.

Para mim, além dessa atmosfera (do) interior, os atores são mesmo o principal trunfo de À Beira do Caminho. João Miguel está excelente como o caminhoneiro João. O menino Vinícius Nascimento é a melhor surpresa: ele emociona somente com o olhar e consegue imprimir uma carga enorme de emoção na tela. À Beira do Caminho é um filme sobre redenção, sobre amizade e sobre a coragem de revisitar o passado para que possamos, enfim, andar para frente. Como um motorista firme na estrada. É para frente que se anda. O passado é nossa matéria-prima,  mas às vezes é necessário deixá-lo. Sempre perto, mas atrás, como uma frase de para-choque de caminhão.

domingo, 19 de agosto de 2012

A linguagem do corpo

Que signo é esse, arrancar todos os cílios e a sobrancelha quando criança, por volta dos 11 anos, até os 13? Que linguagem meu corpo queria criar, que palavras não ditas, a se reinventar como outro código? Minha agonia de olho. Que essa semana se mostrou tão diante de mim, numa crise de pânico durante um exame de vista. Que coisa ridícula, afinal. Uma quase balzaquiana que não consegue colocar lentes de contato nem deixar a médica se aproximar dos meus olhos para aplicar um necessário laser de argônio? O que guardam os meus olhos? O que eles teriam visto, lá atrás, que eu preferiria não ter visto? Que verdade, diante de mim?

Lembro não precisar de óculos. E, justamente nessa fase de arrancar os cílios, cismei que achava bonito usar óculos e pedi um sem grau à minha mãe. Ela me deu. E eu ia feliz para a escola com minha armação escolhida com amor, sentava-me na primeira fileira e dizia que era para enxergar melhor, porque eu agora precisava de óculos. Se os esquecia em casa, franzia a testa e apertava os olhos, para simular uma falta. Era preciso representar, afinal. Ser convincente da minha miopia. Dois anos depois, comecei a ter que usar óculos de verdade, e eles me acompanham até hoje. Da armação com lente de vidro até aqui, chegamos juntos aos três graus e mais alguns tantos de astigmatismo.

Por que será que desejei usar óculos nessa fase? Penso que para proteger os olhos. Acho que eu queria proteger meus olhos de mim mesma. Hoje, prestes a fazer um cirurgia para corrigir a miopia e deixar de usar óculos, pergunto-me se estou pronta para deixar os olhos verem o mundo sem proteção. Para entrar em contato novamente com essas questões, esse passado de ausência e segredos. Dizem que os olhos são a janela da alma. Se eu machuquei meus olhos um dia, se gritava de desespero a qualquer cisco que arranhava minha visão, talvez fosse porque minha alma estava machucada e eu precisava aprender alguma forma de gritar isso, nem que fosse no corpo.

Cada cílio que eu arrancava era cercado de um ritual. Nem sei dizer como começou, nem exatamente quando. Me lembro de me trancar no quarto e escolher, diante do espelho, qual eu iria arrancar. Havia até uma classificação que eu fazia, para mim mesma: os maiores, os mais escuros, os de raiz branquinha. Depois de arrancados, alguns iam para a minha caixinha de música, pois mereciam ser guardados. Outros jaziam mesmo por ali e eram esquecidos. No começo, não se notava a falta de alguns cílios. Quando o vício ficou forte, começaram a aparecer falhas bem grandes e logo eu estava sem nenhum cílio, e logo também sem sobrancelhas. Para a minha mãe, por vergonha, eu dizia que eles estavam caindo, que devia ser alguma alergia. Ela me levou aos melhores médicos da cidade - oftamologistas, dermatologistas e por aí vai. A todos eu repetia a mesma ladainha: estavam caindo, caiam quando eu coçava os olhos...

O que sei é que arrancar os cílios me dava um alívio enorme e inexplicável para alguma coisa também inexplicável e que, até hoje, eu não sei bem o que é. Entender isso talvez seja entender o que sou. Há palpites: ausência do pai, ansiedade descontrolada, agressividade que eu não colocava para fora e voltava para mim etc. Todas essas hipóteses vêm do mesmo lugar e levam para o mesmo lugar, é o que sinto. E tentar compreender que lugar é esse é o que tenho feito. Porque é fácil buscar um nome - tricotilomania - e rotular. Basta pesquisar no Google e logo aparecerão milhares de casos. Sim, quando a gente acha que é maluco, descobre que nunca estamos sozinhos em nenhum barco. Já dizia o pai de uma grande amiga minha durante um porre ou um momento melancólico ou ambos:  o ser humano é um queijo suíço, cheio de buracos.

É fácil buscar um nome e rotular, mas não nos ajuda muito. Ajuda mais, penso eu, atentar para os signos, as imagens. Não me lembro qual era o filósofo que formulava questões mais ou menos asim: "que é isso, a filosofia?". Talvez Heidegger. Talvez. Sei que prefiro seguir por aí, por estes caminhos de florestas, e questionar: que é isso, arrancar os cílios? Ou, mais além: que é isto, o olhar?

O olhar, observadora que sou, é minha maneira mais sublime de conhecer o mundo.

Mais, dessa resposta, vou tecendo enquanto caminho.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sobre Tape e O Deus da Carnificina

Só ontem vi "Tape", do Richard Linklater, com o Ethan Hawke, Robert Sean Leonard (de Dead Poets Society) e a Uma Thurman. Que filme bacana! Achei interessantíssimo. Soa um pouco datado, aquele digitalzão, a câmera meio frenética dentro de um só espaço, mas acho compreensível - o filme é de 2001, quando se começava a falar de digital x película. 

Como vi Carnage, do Polanski, há pouco tempo, ache interessante o paralelo. Dois filmes baseados em peças de teatro, ambos se passam numa só locação e têm ótimos atores. E ambos tematizam a desconstrução das personagens por meio do diálogo, da discussão. 


Até que ponto os argumentos fazem você se perder daquilo que você quer mostrar sobre você. Até que ponto começamos a nos trair e a mostrar nossa verdadeira face. Mas, em meio a tantas casas de espelhos, qual é a verdadeira face? Bons filmes pra pensar sobre isso. 

sábado, 23 de junho de 2012

A arte de amar

O amor deve ser o tema mais primário, mais antigo e mais caro ao homem, tenho cá minhas apostas. Acho que, desde as primeiras manifestações do humano, essa questão já estava lá. Talvez não com esse nome, não como a gente (acha que) entende hoje, mas certamente já rondava os coraçõezinhos lá nas cavernas.

Não conheço a história do amor enquanto a noção que temos hoje, os vários tipos de amor, a construção do amor romântico etc. Sei que há inúmeros estudos, mas ainda não procurei. O que sei é que amo. E, como quem ama, tenho cá minhas milhares de angústias e crises existenciais. A dor e a delícia não é só de ser quem se é - é também de caminhar em direção a um amor maduro, que equilibre desejo, entendimento, temperança, alteridade, enfim, 1+1=3.

Todas essas questões ficam mais afloradas quando você passa a viver junto com a pessoa amada todos os dias. E eu me mudei oficialmente este ano. Já vinha namorando a casa nova, passando temporadas aqui e ali, mas a mudança mesmo aconteceu recentemente. A ruptura de deixar a casa da mãe, de deixar tudo o que é conhecido - quarto, colo, cachorro - para viver uma jornada que você não sabe bem onde vai dar. Como diria aquela música da Legião, largar a segurança do seu mundo por amor.

É lindo esse processo, mas também é cheio de dor. Alegria pelo novo e melancolia pelas perdas. Só que ninguém fala das perdas, do luto. Alguém já viu um recém-casado falar que, apesar de estar muito feliz, também está triste? Casar é paradoxal pra caramba. É abrir mão de um infinito de possibilidades em nome de uma. E apostar nessa escolha desejada com toda a intensidade.

Foi nesse turbilhão que eu resolvi participar de uma sessão do jogo "TUI - A arte de amar", de que a minha terapeuta sempre me falava. Trata-se de um jogo de tabuleiro muito especial, desenvolvido por duas médicas de Minas Gerais, cujo objetivo principal é o autoconhecimento. Perceber, em grupo, como estamos vivenciando o amor: a que padrões estamos presos, qual é o nosso desejo, o que esperamos do outro, como enxergamos a possibilidade de futuro, enfim.

O Tui  é um jogo para mulheres, pelo menos assim o foi na minha experiência. Cada uma joga os dados e move o peão. Antes da dinâmica começar, cada uma tira uma carta do tarô e escolhe um objeto, sem pensar muito. Bom, a cada casa, tiramos uma carta do próprio jogo. Também podemos escolher, por exemplo, entre uma virtude ou um ensinamento do sábio. Em algumas jogadas, somos convidadas a abrir para o grupo nossas experiências de vida. E é aí que a dinâmica se enriquece, pois aquelas mulheres acabam criando um vínculo de amor, fraterno, mesmo sem nunca terem se visto antes. Uma se vê na história da outra, nas dores, nos anseios. E assim seguimos.

O meu jogo começou na casa da insensatez juvenil e na dificuldade inicial. Segui para "a conduta", passei pela "repetição", por "amigos e projetos", pela "virada". Terminei na casa da água, esse elemento tão caro a nós, cancerianos. Meu mantra do vir a ser água me persegue. Porque é quase um desejo. Quando nada me serve de chão, eu quero me misturar à água. Debaixo d´água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido, sem contato com o ar. Mas tinha que respirar! - é o que diz aquela música do Arnaldo Antunes que a Bethania canta e que sempre me faz chorar por me colocar nesse meu lugar primeiro, nessa dificuldade de respirar.

Só na água eu consigo ser flexível e leve. A rigidez não é bem-vinda nas águas. Uma pedra, quando atirada num rio, fatalmente afunda. Minha rigidez, que no mundo veio encontrando espaço e me moldando - essa criatura que é quase um soldado ao mesmo tempo em que é doce -, minha rigidez não cabe no espaço sagrado das águas.

Os momentos mais belos de meditação que eu vivi foram no mar, boiando, exercitando a entrega. Fechar os olhos e deixar o corpo leve, o corpo ir, sem temer as ondas. Foi minha mãe quem me ensinou a boiar, em Trancoso, na Bahia. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos. Nunca me esqueço desse dia, nem de como se boia. Se abrir os olhos com medo, a gente afunda e a onda nos cobre.

A carta do tarô que tirei no começo da dinâmica foi a morte. Meu objeto foi um barco. E eu terminei na casa da água. Acho que o ciclo se fechou de forma muito bonita e forte. Fez todo o sentido do mundo pra mim. Estou nesse barco entre dois mundos, atravessando águas ainda desconhecidas, construindo minha carta de navegação. Para onde quero ir? Não sei. Para o amor. O amor, infinito e além.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Crítica de cinema: Pina 3D, de Wim Wenders


Pina é um encontro de dois grandes expoentes da arte alemã. De um lado, a bailarina e coreógrafa Pina
Bausch, morta em 2009. De outra, o cineasta Wim Wenders, famoso pelo caráter autoral de suas obras, como Paris, Texas (1984) e Asas do Desejo (1987). Em seu mais novo documentário, Wenders direciona sua sensibilidade para homenagear Pina Bausch, que se tornou conhecida mundo afora por romper as fronteiras entre o teatro e a dança. O filme já estava sendo produzido quando Pina faleceu. Wenders quis continuar o projeto ainda sim, mostrando o processo de criação da artista e sua relação com os bailarinos do Tanztheater Wuppertal - companhia dirigida por ela e que se tornou uma espécie de ícone da dança contemporânea.


Wim Wenders não é nenhum estreante no documentário. Em 1999
, fez Buena Vista Social Club, sobre a orquestra cubana de mesmo nome. O filme foi indicado ao Oscar de melhor documentário na época, assim como Pina foi neste ano. A diferença é que Pina é uma experiência mais radical, até pelo tema do filme. Se Pina Bausch explorou o diálogo entre teatro e dança, mostrando que as duas linguagens podem caminhar juntas, Wenders fez uso da mesma proposta e rompeu com as fronteiras do gênero documental. 

Assim, Pina transita entre características da vídeo-dança e do documentário, enriquecendo a experiência do expectador
. A estrutura do filme é composta basicamente de depoimentos dos bailarinos que trabalharam com Pina Bausch e longos trechos de espetáculos e coreografias. É justamente a mistura de linguagens que torna a utilização do 3D mais interessante. Pina é o primeiro filme de Wim Wenders utilizando esse recurso. O resultado é uma obra que coloca o 3D a serviço da arte, ampliando a experiência estética do público, que pode sentir de forma muito mais intensa a emoção dos bailarinos. A sensação é de participar da coreografia, de estar no meio de um cenário onde tudo é poesia.

Os depoimentos dos bailarinos também emocionam. Todos são unânimes quando falam da força expressiva de Pina
Bausch, que contrastava com o corpo delicado e franzino. Pina sabia explorar o melhor de cada dançarino. Ela não buscava padrões: em sua companhia, vemos dançarinos de diversas nacionalidades, ora mais velhos, ora jovens. Não há um corpo ideal. Há diferentes corpos e linguagens, assim como na vida. A ideia de Pina, aliás, parecia ser transportar a vida para o palco. Ou transportar o palco para a vida. Elementos cotidianos viravam matéria de poesia. Ações cotidianos inspiravam as coreografias e cada dançarino-ator era incentivado a levar um gesto que fosse representativo, que sintetizasse todas as emoções.

A matéria-prima para Pina
Bausch parecia ser mesmo a paixão. E Wim Wenders soube captar isso no filme, com os recursos próprios do cinema. Se você prefere filmes em terceira dimensão que potencializem efeitos especiais e tragam adrenalina, ou então não tem paciência para as inovações da dança contemporânea, a experiência de passar quase duas horas vendo Pina pode ser tediosa. Nesse caso, é melhor ver outra coisa. Agora, se você gosta de arte e de dança e quer ver um filme em 3D que potencialize sensações e aguce os sentidos, vá assistir sem medo. É uma belíssima experiência. 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Das árvores que amo



Ainda sobre o processo de mudar a alma de casa:

Sentirei falta da gameleira da 206/207 sul, que reverencio a cada caminhada. Sobretudo, sentirei falta do pé de jasmim-manga que fica em que frente ao meu antigo bloco, e que já virou meu cantinho perfumado do sagrado.

Se minha alma fosse uma flor, certamente seria uma flor de frangipani.

Mudar a alma de casa

Ainda neste mês vamos entregar definitivamente o apartamento onde morei por oito anos. Embora haja euforia por assumir de vez a casa nova, há muito de melancólico em deixar uma casa. Todos os cantos, todas as estantes, todas as paredes e caminhos são repletos de memória. De modo que um quadro deixa de ser só um quadro. Um enfeite ganha amplidões de sentido. E os espaços feitos de histórias vão ficando de um vazio triste a cada caixa que sai porta afora. Difícil. Nenhum canceriano deveria fazer mudanças. Deveríamos, sim, esperar a onda bater na carapaça e simplesmente ir, simplesmente ir...

segunda-feira, 26 de março de 2012

Algumas considerações sobre o caso Renato Rocha, da Legião Urbana

A repercussão em torno da história de Renato Rocha, ex-baixista da Legião Urbana e que hoje é morador de rua, me fez pensar em uma série de questões que estão sendo minimizadas em detrimento de um sensacionalismo fácil, de uma visão muito maniqueísta das coisas, em minha opinião.

Para quem não está acompanhando o caso, Negrete (como o músico era conhecido) foi tema de uma reportagem de cerca de 15 minutos no programa Domingo Espetacular, da Record. A matéria foi ao ar ontem à noite e, desde então, Renato Rocha vem despertando discussões acaloradas na internet. A maior parte dos comentários o coloca como vítima, como injustiçado num país sem memória.

A matéria, para mim, ajudou a reforçar essa imagem. A equipe do Domingo Espetacular foi ao encontro de Negrete, que aparece sentado num meio-fio de uma rua no Rio de Janeiro. Ele estava de camisa vermelha, bermuda, chinelos e boné. Mais velho e mais gordo, quase não fazia contato visual – logo ele, a figura mais esfíngica da Legião, cujo olhar incisivo e certeiro tanto dizia da sua alma punk.

A partir dessa apresentação, vemos um pouco de tudo, o mais do mesmo daquela matéria feita pra chorar: a repórter mostra um fã que o reconhece nas ruas e pede autógrafo; vemos imagens de Negrete andando de chinelo por uma enorme poça d´água numa rua, carregando seus pertences num saco; vemos o hotel em que ele guarda o baixo que comprou há três meses. A repórter pede que ele toque uma música e ele tenta relembrar os acordes de Ainda é Cedo, meio destreinado. A lembrança ainda está ali, mas distante, como um fantasma do que ele já foi.

Enquanto isso, em Brasília, a repórter Venina Nunes visitava o escritório de advocacia do pai de Negrete, um senhor de seus 80 anos. O pai disse que há muitos anos não vê o filho e que as drogas o levaram a essa situação.

O programa informa que o músico vive com apenas R$ 900 de direitos autorais pagos pelo ECAD, o que é realmente muito pouco se pensarmos que ele fez parte da maior banda do movimento Rock Brasília, que vende milhares de discos até hoje. Se pensarmos que o ECAD é a maior caixa de pandora dos direitos autorais, a quantia fica mais suspeita ainda, mas isso são outros quinhentos e rende uma discussão à parte.

Bom, a reportagem termina dizendo que os ex-companheiros de banda, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, foram procurados e não quiseram dar entrevista.

Diante de tudo isso, algumas perguntas ficaram na minha cabeça:

  • Como a pessoa ganha R$ 900 todo mês e está morando na rua, mendigando? É pouco, mas é mais que um salário mínimo;

  • Como um morador de rua compra um baixo novinho?;

  • Por que Negrete não busca ajuda da família, que parece estar numa situação boa em Brasília?

Essas foram apenas algumas perguntas que a reportagem me despertou. O que acho, depois de pensar em todos os lados da questão, é o seguinte: não dá para culpar os outros (sejam Dado e Bonfá, seja o ECAD, seja o sistema, seja a indústria cultural ou o que for) pela situação em que Renato Rocha está. É sempre muito mais fácil nos colocarmos no lugar de vítima, como se estivéssemos sofrendo por conta de coisas que conspiraram conta nós, em vez de olharmos para o que fizemos.

Nesse caso específico, a real é direta e certeira: Negrete está nessa situação porque ele se colocou nela. Simples assim. Ação e reação. Todos sabemos que Renato Rocha era o mais doidão da banda, que se orgulhava por ser verdadeiramente punk, ao contrário dos “playboyzinhos” que rasgavam a calça e aprendiam a tocar igual a cara deles só pra ter bandinha, como ele costumava definir os outros meninos. Renato embarcou forte nas drogas e começou a chegar atrasado, perder ensaios, perder vôos etc. Até que foi expulso da banda por Renato Russo. Depois disso, poderia ter aproveitado a notoriedade que ganhara na Legião e montar nova banda. Poderia ter ido trabalhar em outra coisa. Poderia ter virado professor de baixo. Sei lá. Q-u-a-l-q-u-e-r c-o-i-s-a.

O que eu quero dizer é: se te expulsam da banda, é claro que você fica puto, se sente injustiçado, enfim. Mas você tenta se reerguer, tenta buscar outras alternativas. O que me parece é justamente que Renato Rocha não buscou. Ficou ali, vivendo de direitos autorais, pirando, continuou a usar drogas. Até que chega uma hora que fica difícil. Ele não me pareceu, pela reportagem, alguém que está querendo loucamente sair das ruas. Parece estar meio passado, meio em outro plano.

Talvez ele só queira que alguém o resgate. Em determinado momento da matéria, ele diz à repórter que quer voltar a tocar, mas que está esperando uma oportunidade. Bingo. As oportunidades certamente virão com a matéria. Aposto que vão chover convites para entrar em bandas. Resta saber se ele vai agarrar ou se novamente vai se sabotar, como vem fazendo com suas escolhas. Negrete precisa querer verdadeiramente ser resgatado. Senão será mais do mesmo. De novo.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Iansã e Oxossi

- Mas calminha desse jeito?

Não é preciso alarde para quem sabe, no íntimo, ter a força das tempestades e o profundeza das raízes das árvores. Como você, sou filha dos raios de Iansã. Aprendi a falar com o barulho dos trovões. Fui alfabetizada assim, entre a explosão e o afago. Sempre um pouco doce, um pouco brava. Muito dos dois. Sempre muito. Sempre branda. Na mesma medida em que incendeio, posso soprar a brisa das chuvas da manhã. Sei a estrada para ambos os estados de alma. E há todo o meio do caminho. O entre. Talvez por isso eu mude tanto, pelo infinito das possibilidades. Mudo com a velocidade de um lampejo. Se o meu olhar conforta, pode cortar na mesma medida. Sou calma, sim, como você viu nesse retrato precipitado de mim. Mas sou filha de Iansã e Oxossi. A nossa diferença é que guardo minhas tempestades para quando me convém. Não sou de espalhar temporais em qualquer lugar, não preciso dos holofotes. Gosto do palco, mas também gosto da sombra. Sou dada a cantos, à acolhida de ficar quieta, observando. Sei a beleza e a força do silêncio. De modo que, neste nosso breve contato, eis o que você precisa saber sobre mim: ser forte não é só empunhar a espada, mas saber dançar com ela, junto ao coração.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Set list afetiva da Bahia - Conto de Areia

Impossível ver os saveiros pousados nas águas e não me lembrar de Conto de Areia, com a saudosa Clara Nunes. Começa como um chamado: foi beira mar quem chamou. Só quem escuta o silêncio da beira da praia sabe que chamado é esse, o chamado silencioso e cadenciado das ondas. A música vai ao encontro do imaginário de Jorge Amado em Mar Morto, que eu estava lendo na viagem: olhos morenos molhados de mar; estrelas bordadas de prata; a lua refletindo no mar, espalhando os cabelos de dona Janaína; um peito cheio de promessas; amores aflitos no cais; o vento arrastando os veleiros pro meio das águas de Iemanjá. Era um peito só, cheio de promessas. Eram Guma e Lívia. Eram os marítimos das terras do sem fim. Conto de Areia. Indispensável na minha set list afetiva da Bahia.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Set list afetiva da Bahia - É doce morrer no mar

Voltei há pouco de viagem, depois de passar onze dias incríveis e intensos na Bahia. Como boa filha de baiana, sou apaixonada por aquela terra, tão rica em material cultural e sobretudo humano. A Bahia já nos deu e nos dá muito. Além de todas as cores e sabores que me alimentaram os sentidos, para mim foi impossível andar pelas ruas de Salvador ou pela areia da praia em Morro de São Paulo sem que algumas músicas invadissem meu pensamento. Parece que tudo é musica na Bahia.

É assim: você sobre uma ladeira e logo pensa na Ladeira da Preguiça ou na Ladeira do Curuzu. Você passa pelo Pelourinho, em frente à Fundação Casa de Jorge Amado, e logo pensa que o Haiti é aqui. Caminha pela beira do cais e se lembra de Caymmi ao ver os saveiros descansando nas águas - é doce morrer no mar, cantaria um velho marítimo. E por aí vai. Foram muitas as musicas que embalaram essa minha jornada. Compartilho então com vocês minha set list afetiva da Bahia. São muitas as músicas, então vou postando um pouquinho a cada dia.

Nada mais justo que começar com Dorival Caymmi, que foi trilha sonora enquanto eu lia Mar Morto, de Jorge Amado, na beira da praia:




segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

valsa verde # 2

Enquanto corria pelas superquadras, imaginei nós dois numa valsa flutuante em meio às árvores, ainda molhadas de chuva, ao som de La Mer. Dançar sem gravidade diante das copas verde-água, verde-chuva, ver-te valsa.

valsa verde # 1

Dançávamos de mãos dadas diante de crianças, todos os olhares atentos para o pulo que parecia um pato, dezenas de meninos nos imitavam por toda a rua, com as luzes dos postes projetando milhares de patos no chão. Andamos até a escada, quando você parou e me deu passagem. Continuei andando; valsava agora com as luzes e com o que sobrara de você. Eu girava e meninos brincavam embaixo da minha saia, cada um pendurado em um carrossel de tecido. Viramos uma sombrinha perdida a nos proteger de chuvas. Um guarda-chuva verde, esquecido, na rua de patos.

18 dias no Japão

Foram 18 dias de sonho e muitas caminhadas pelo Japão. Começamos por Tokyo, onde ficamos por 4 dias. A ideia era entrarmos em contato com c...