terça-feira, 28 de agosto de 2012

Crítica de cinema: À Beira do Caminho, de Breno Silveira



O diretor Breno Silveira sabe como contar uma história e emocionar, mesmo seguindo um roteiro previsível e optando por uma direção sem grandes inovações. Foi assim em “2 Filhos de Francisco” (2005) e é assim também em seu longa mais recente, À Beira do Caminho.

O filme é um legítimo road movie e conta a história do caminhoneiro João (João Miguel), um homem endurecido pela vida, que segue solitário, sem poucos amigos. Dele, nada sabemos no início do filme. Seu passado vai sendo construído aos poucos, em lembranças inseridas ao longo da narrativa. E o motor para a reconstrução desse passado é o encontro dele com o menino Duda (Vinícius Nascimento), que se esconde no caminhão de João com o intuito de chegar até São Paulo em busca do pai, que ele nunca conheceu. É do farto material humano que vem do encontro dessas duas pessoas machucadas pela vida que o filme se vale. E dá certo.

No início, João tenta largar o pequeno Duda na cidade mais próxima. Ele, um homem bruto de barba por fazer, não é lá dado a muita conversa e não quer uma criança viajando com ele. Mas a história de Duda funciona, de certa forma, como um espelho de sua própria história. O menino perdeu a mãe e se viu sem nenhum parente por perto. O único resquício de família que lhe sobrou foi uma velha foto do pai, com um endereço de São Paulo no verso. Já o sisudo João largou para trás sua família, após desencontros amorosos e tragédias envolvendo a sensual Rosa (Dira Paes) e a doce Helena (Ludmila Rosa).

Conforme vão cruzando as estradas rumo a São Paulo, João e Duda inevitavelmente constroem laços de amizade que vão modificar o rumo de suas vidas. A história ganha ainda mais carga emocional com a trilha sonora, composta unicamente por músicas de Roberto Carlos. Nada poderia cair tão bem para embalar essa trama que se passa no coração do Brasil, no interior, e que fala de pessoas simples, de amor e  amizade. Uma curiosidade: foram as músicas do Rei que inspiraram o argumento do filme, que é o que serve de base para o roteiro.



A direção de fotografia de À Beira do Caminho, assinada por Lula Carvalho (filho do genial Walter Carvalho), é primorosa, assim como a direção de arte de Claudio Amaral Peixoto. Somos realmente transportados para a atmosfera das cidades do interior. Tudo está: os postos de gasolina simples, os restaurantes de beira de estrada, os rios onde Duda e João tomam banho e lavam roupas, os parques de diversão improvisados .

Quem já viveu no interior do nordeste ou tem família nesse universo, certamente  vai se identificar com muitos dos elementos. Fui assistir com a minha mãe e choramos, as duas, ao ver um pouco das nossas raízes. Eu me lembrei das viagens que fizemos à Bahia, de ônibus, quando eu era criança. Das vezes em que paramos para comprar umbu porque eu estava com dor de barriga. Me lembrei também das idas a Posse, de caminhonete, as crianças na caçamba da D20, o parquinho com roda gigante que os ciganos montaram na praça. Eu queria ir, mas tinha toda aquela coisa de que "cigano roubava menino".  Ah, e tem as canções do Rei, é claro. Acho que elas sempre estiveram de música incidental na minha vida. Tanto que eu e minha mãe fomos juntas também ao show dos 50 anos dele aqui em Brasília. Bom, mas deixemos minhas memórias e voltemos ao filme.

Para mim, além dessa atmosfera (do) interior, os atores são mesmo o principal trunfo de À Beira do Caminho. João Miguel está excelente como o caminhoneiro João. O menino Vinícius Nascimento é a melhor surpresa: ele emociona somente com o olhar e consegue imprimir uma carga enorme de emoção na tela. À Beira do Caminho é um filme sobre redenção, sobre amizade e sobre a coragem de revisitar o passado para que possamos, enfim, andar para frente. Como um motorista firme na estrada. É para frente que se anda. O passado é nossa matéria-prima,  mas às vezes é necessário deixá-lo. Sempre perto, mas atrás, como uma frase de para-choque de caminhão.

domingo, 19 de agosto de 2012

A linguagem do corpo

Que signo é esse, arrancar todos os cílios e a sobrancelha quando criança, por volta dos 11 anos, até os 13? Que linguagem meu corpo queria criar, que palavras não ditas, a se reinventar como outro código? Minha agonia de olho. Que essa semana se mostrou tão diante de mim, numa crise de pânico durante um exame de vista. Que coisa ridícula, afinal. Uma quase balzaquiana que não consegue colocar lentes de contato nem deixar a médica se aproximar dos meus olhos para aplicar um necessário laser de argônio? O que guardam os meus olhos? O que eles teriam visto, lá atrás, que eu preferiria não ter visto? Que verdade, diante de mim?

Lembro não precisar de óculos. E, justamente nessa fase de arrancar os cílios, cismei que achava bonito usar óculos e pedi um sem grau à minha mãe. Ela me deu. E eu ia feliz para a escola com minha armação escolhida com amor, sentava-me na primeira fileira e dizia que era para enxergar melhor, porque eu agora precisava de óculos. Se os esquecia em casa, franzia a testa e apertava os olhos, para simular uma falta. Era preciso representar, afinal. Ser convincente da minha miopia. Dois anos depois, comecei a ter que usar óculos de verdade, e eles me acompanham até hoje. Da armação com lente de vidro até aqui, chegamos juntos aos três graus e mais alguns tantos de astigmatismo.

Por que será que desejei usar óculos nessa fase? Penso que para proteger os olhos. Acho que eu queria proteger meus olhos de mim mesma. Hoje, prestes a fazer um cirurgia para corrigir a miopia e deixar de usar óculos, pergunto-me se estou pronta para deixar os olhos verem o mundo sem proteção. Para entrar em contato novamente com essas questões, esse passado de ausência e segredos. Dizem que os olhos são a janela da alma. Se eu machuquei meus olhos um dia, se gritava de desespero a qualquer cisco que arranhava minha visão, talvez fosse porque minha alma estava machucada e eu precisava aprender alguma forma de gritar isso, nem que fosse no corpo.

Cada cílio que eu arrancava era cercado de um ritual. Nem sei dizer como começou, nem exatamente quando. Me lembro de me trancar no quarto e escolher, diante do espelho, qual eu iria arrancar. Havia até uma classificação que eu fazia, para mim mesma: os maiores, os mais escuros, os de raiz branquinha. Depois de arrancados, alguns iam para a minha caixinha de música, pois mereciam ser guardados. Outros jaziam mesmo por ali e eram esquecidos. No começo, não se notava a falta de alguns cílios. Quando o vício ficou forte, começaram a aparecer falhas bem grandes e logo eu estava sem nenhum cílio, e logo também sem sobrancelhas. Para a minha mãe, por vergonha, eu dizia que eles estavam caindo, que devia ser alguma alergia. Ela me levou aos melhores médicos da cidade - oftamologistas, dermatologistas e por aí vai. A todos eu repetia a mesma ladainha: estavam caindo, caiam quando eu coçava os olhos...

O que sei é que arrancar os cílios me dava um alívio enorme e inexplicável para alguma coisa também inexplicável e que, até hoje, eu não sei bem o que é. Entender isso talvez seja entender o que sou. Há palpites: ausência do pai, ansiedade descontrolada, agressividade que eu não colocava para fora e voltava para mim etc. Todas essas hipóteses vêm do mesmo lugar e levam para o mesmo lugar, é o que sinto. E tentar compreender que lugar é esse é o que tenho feito. Porque é fácil buscar um nome - tricotilomania - e rotular. Basta pesquisar no Google e logo aparecerão milhares de casos. Sim, quando a gente acha que é maluco, descobre que nunca estamos sozinhos em nenhum barco. Já dizia o pai de uma grande amiga minha durante um porre ou um momento melancólico ou ambos:  o ser humano é um queijo suíço, cheio de buracos.

É fácil buscar um nome e rotular, mas não nos ajuda muito. Ajuda mais, penso eu, atentar para os signos, as imagens. Não me lembro qual era o filósofo que formulava questões mais ou menos asim: "que é isso, a filosofia?". Talvez Heidegger. Talvez. Sei que prefiro seguir por aí, por estes caminhos de florestas, e questionar: que é isso, arrancar os cílios? Ou, mais além: que é isto, o olhar?

O olhar, observadora que sou, é minha maneira mais sublime de conhecer o mundo.

Mais, dessa resposta, vou tecendo enquanto caminho.

18 dias no Japão

Foram 18 dias de sonho e muitas caminhadas pelo Japão. Começamos por Tokyo, onde ficamos por 4 dias. A ideia era entrarmos em contato com c...